segunda-feira, 5 de maio de 2008

.desenterrando

Em meio à "estiagem" de livros da última semana, achei por bem organizar algumas coisas no meu quarto e dei por falta do único livro do Arnaldo Jabor que eu tenho: Amor é prosa, sexo é poesia. Achei ele no quarto do meu irmão, e voltei a folhear algumas páginas.
Resolvi colocar aqui uns trechinhos de uma crônica bem interessante, onde ele fala das recordações que tem do avô...

Coisas dos tempos idos, quando eu não era nem projeto. Mas o mundo – e as pessoas – não mudaram nada nesse meio tempo, pelo visto...


Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca
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ESTE TEXTO é sobre ninguém. Meu avô não foi ninguém. No entanto, que grande homem ele foi para mim. Meu pai era severo e triste, mal o via, chegava de aviões de guerra e nem me olhava. Meu avô, não. Me pegava pela mão e me levava para o Jockey, para ver os cavalinhos. Foi uma figura masculina carinhosa em minha vida. Se não fosse ele, talvez eu estivesse hoje cantando boleros no Crazy Love, com o codinome Neide Suely.

Meu avô, Arnaldo Hess, foi um belo retrato do Brasil dos anos 40/50. Era um malandro carioca – em volta dele, gravitavam o botequim, a gravata com alfinete de pérola, o sapato bicolor, o cabelo com Gumex, o chapéu-palheta, o relógio de corrente, seu Patek Phillipe tão invejado, em volta dele ressoava a língua carioca mais pura e linda, com velhas gírias (“Essa matula do Flamengo é turuna!”...). Meu avô era orgulhoso de viver nesta cidade baldia e amada, o Rio que soava nos disco de 78 rpm, nas ondas do rádio, o Rio precário e poético, dos esfomeados malandros da Lapa, das mulheres sem malho e de seus sofrimentos românticos, entre varizes e celulite.
(...)
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Ele também me dava aulas de sexo. Contou-me uma vez que a melhor mulher que ele teve na vida tinha sido uma “joão”. Que era “joão”? Esse termo, ainda escravista, designava as pretinhas tão pretinhas que tinham o pixaim da cabeça ralo, quase carecas. Eram as “joão”. Pois ele me disse: “Foi no terreno baldio, ali na General Belfort... foi o melhor nick fostene que eu tive...” (inventara esse nome de falso inglês de cinema americano para designar a cópula, sendo a palavra acompanhada pelo gesto vaivém de bomba de “Flit”: Nick Fostene...). Contava isso a um menino de dez anos, a quem ele dava cigarros e ensinava (a mim e ao Cláudio Acylino, meu primo) a pegar bonde no estribo, andando. Me apresentou sua amante, uma mulher ruiva chamada Celeste, que me beijava trêmula e carente como uma avó postiça e que, sendo de “boa família” (ele me falava disso com uma ponta de orgulho), “nunca se metera em sua vida familiar oficial”. Isso ele dizia com os olhos machistas molhados de gratidão. Ou seja, ele me ensinava tudo errado e com isso me salvou.
(...)

Uma vez, já mais tarde, eu namorava uma moça lindíssima e virgem (claro) mas burrinha. Reclamei com ele. Resposta: “Ah, é burrinha? Você quer inteligência? Então vai namorar o Santiago Dantas!”. Quando fomos aos sinistros rendez-vous, de onde nos floresceram as primeiras gonorréias, nossos pais severos bronquearam: “Vocês são uns porcos!”. Já nosso vovô riu, sacaneando: “Poxa... boas mulheres, hein...?”.

Vovô nos ensinava a conversar com as pessoas, olho no olho. Na minha família de classe média, celebravam-se as meias-palavras, o fingimento de uma elegância falsa, de uma finesse irreal. Só meu avô falava com os vagabundos da rua, com os botequineiros, com os mata-mosquitos. Enquanto minha família toda votava histericamente na UDN, em pleno delírio golpista, meu avô pegou o chapéu, e foi votar. Eu fui atrás dele... “Votar em quem?” “No Getúlio, seu Arnaldinho... ele gosta do povo e eu sou povo.”. “Eu sou ‘povo’ também, vovô?”, perguntei. Ele riu: “Você não; você tem velocípede....”.

Ele me levava ao Maracanã, ele me levava em seu ombro para ver a estrela néon da cervejaria Black Princess (até hoje me brilha esta supernova na alma), ele, uma vez, deixou-me ver um morto na calçada, navalhado no peito (“Parecia a fita do Vasco da Gama”, ele disse) – não me escondeu a tragédia.
Me ensinou tudo errado e me salvou...
(...)

Velho gagá, deu para dizer coisas profundíssimas. Uma vez, já nos anos 70, celebrei para ele as maravilhas lisérgicas do LSD que eu tomara. Ele me ouviu falar em “delírio de cores”, “lucy in the skies” e comentou: “Cuidado, Arnaldinho, pois nada é só bom...”. Outra vez, vendo passar um super-ripongão sujo, “bicho-grilo brabo”, comentou: “Olha lá. Um sujeito fingindo de mendigo para esconder o que realmente é...!”

Há dois anos, na exumação de um parente, o coveiro colocou várias caixas de ossos em cima do túmulo. Numa delas, estava escrito a giz: “Arnaldo Hess”. Não resisti e levantei de leve a tampa de zinco. Estavam lá os ossos de vovô. Vi um fêmur, tíbias, que eu toquei com a mão. Vocês não imaginam a infinita alegria de, por segundos, encostar em meu avô querido. Eu estava com ele de novo em 1952, sob o céu azul do Rio.

Meu avô não era ninguém. Mas nunca houve alguém como ele.


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