terça-feira, 25 de março de 2008

.o 12º

Não sei exatamente por que, mas esse ano voltei a ler como antigamente, se não mais...
E o 12º eleito é o ótimo "Coisas da Vida", crônicas da Martha Medeiros. Ainda não terminei, mas já tem muitas delas que eu gostaria de colocar aqui. O problema é que tá difícil escolher.
Então fiz aquela coisa meio "Bíblia", quando as pessoas abrem numa página qualquer esperando uma resposta pra resolver a dor e as angústias que sentem. Eu precisava escolher de alguma forma, então decidi ao acaso.
E eis a crônica de hoje:
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Lembranças mal lembradas
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A maioria dos nossos tormentos não vêm de fora, estão alojados na nossa mente, cravados na nossa memória. Nossa sanidade (ou insanidade) se deve basicamente à maneira como nossas lembranças são assimiladas. "As pessoas procuram tratamento psicanalítico porque o modo como estão lembrando não as libera para esquecer." Frase do psicanalista Adam Philips, publicada no livro O flerte.
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Como é que não pensamos nisso antes? O que nos impede de ir pra frente é uma lembrança mal lembrada que nos acorrenta ao passado, estanca o tempo, não permite avanço. A gente implora a Deus para que nos ajude a esquecer um amor, uma experiência ruim, uma frase que nos feriu, quando na verdade não é esquecer que precisamos: é lembrar corretamente. Aí sim: lembrando como se deve, a ânsia por esquecimento poderá até ser dispensada, não precisaremos esquecer de mais nada. E, não precisando, vai ver até esqueceremos.
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Ah, se tudo fosse assim tão simples. De qualquer maneira, já é um alento entender as razões que nos deixam tão obcecados, tristes, inquietos. São as tais lembranças mal lembradas.
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Você fez cinco anos, sonhava em ganhar a primeira bicicleta, seu pai foi viajar e esqueceu. Uma amiga íntima, que conhecia todos os seus segredos, roubou seu namorado. Sua mãe é fria, distante, percebe-se que ela prefere disparado sua irmã mais nova. E aquele amor? Quanta mágoa, quanta decepção, quanto tempo investido à toa, e você não esquece - passaram-se anos e você, droga, não esquece.
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Essas situações viram lembranças, e essas lembranças vão se infiltrando e ganhando forma, força e tamanho, e daqui a pouco nem saberemos mais se elas seguem condizentes com o fato ocorrido ou se evoluíram para algo completamente alheio à realidade. Nossa percepção nunca é 100% confiável.
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O menino de cinco anos superdimensiona uma ausência que foi emergencial, não proposital.
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Você nem gostava tanto assim daquele namorado que sua amiga surrupiou (aliás, eles estão casados até hoje, não foi um capricho dela.)
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Sua mãe tratava as filhas de modo diferenciado porque cada filho é de um modo, cada um exige uma demanda de carinho e atenção diferente, o dia que você tiver filhos vai entender que isso não é desamor.
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E aquele cara perturba seu sono até hoje porque você segue idealizando o sujeito, se recusa a acreditar que o amor vem e passa. Tudo parecia tão perfeito, ele era o tal príncipe do cavalo branco sem tirar nem pôr. Ajuste o foco: o coitado foi apenas o ser humano que cruzou a sua vida quando você estava num momento de carência extrema. Libere-o dessa fatura.
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São exemplos simplistas e inventados, não sou do ramo. Mas Adam Philips é, e me parece que ele tem razão. Nossas lembranças do passado precisam de eixo, correção de rota, dimensão exata, avaliação fria - pena que nada disso seja fácil. Costumamos lembrar com fúria, saudade, vergonha, lembramos com gosto pelo épico e pelo exagero. Sorte de quem lembra direito.
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[devo concordar....]

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