"O MEU AMIGO mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente, do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável.
[...]
Eu gostaria de simplificar o problema de meu "temperamento", apresentando-me como a manifestação duma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe - sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade - podem ser comparadas com os muros duma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.
"Mas a coisa não é assim tão simples e nítida" - observa o Outro. - "eu sei, eu sei" - respondo em pensamentos - "mas vamos adiante, companheiro. É pelo sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade."
O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente céticos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?".
Ambos encolhemos os ombros."
.
.
[trecho inicial do "solo de clarineta" - erico verissimo.
o livro é uma auto-biografia, onde o erico conta toda a história da família, dele mesmo e seus conflitos, e alguma coisa sobre os livros que escreveu. certos personagens dele foram inspirados em pessoas da família - por exemplo, toríbio cambará, de "o tempo e o vento", foi inspirado por um tio: nestor verissimo... enfim, bem interessante para quem gosta das obras dele.]
.